quinta-feira, fevereiro 09, 2017

As novas tecnologias e o suicídio por Amor; Uma arreliadora incompatibilidade

Uma boa quantidade de médicos legistas amadores tem andado entretida a passar certidões de óbito. O romance, o autor, o riso, a arte, a ficção – todos têm morrido várias mortes. Talvez seja exagero dizer que todas essas coisas morreram, mas é inegável que algumas estão com má cara. A ficção, por exemplo, agoniza por causa do telemóvel. Quase todos os filmes têm, agora, um aborrecido diálogo dedicado a telecomunicações. Em certo ponto da narrativa, o herói constata que está sem bateria no telemóvel, ou tem pouca rede no sítio onde se encontra. Assim, ninguém pode avisá-lo de que há um assassino escondido no armário, ou uma bomba prestes a explodir. E, infelizmente, quase nunca a bomba está prestes a explodir no armário onde se esconde o assassino, o que resolveria dois problemas.

Antigamente, os enredos sofriam por défice de comunicação. As pessoas que rodeavam a Lassie tinham de fazer um esforço hermenêutico bastante grande para interpretar correctamente os latidos do bicho: “O quê, Lassie? O Timmy caiu ao poço da quinta dos Ferguson, junto ao celeiro, quando se debruçava para caçar uma borboleta, pois começou na semana passada uma colecção de belos lepidópteros?” Hoje, o excesso de comunicação prejudica a narrativa. O final de “Romeu e Julieta” seria bem diferente no tempo dos telemóveis. Depois de dar a Julieta a poção que vai colocá-la durante 42 horas num estado de morte aparente, Frei Lourenço envia um mensageiro a Mântua, para que ele ponha Romeu a par do embuste, e evite que o jovem se ponha com gestos românticos irreversíveis. No entanto, como se sabe, o mensageiro não consegue contactar Romeu, e a história acaba em tragédia. Se todas as personagens estivessem munidas de um smartphone, no entanto, o final da peça seria outro:

“– Estou?

– Romeu, é Frei Lourenço. Tudo bem? Olha, é só para avisar que a Julieta não está mesmo morta. Parece que está mas não está. Foi uma poção que eu lhe dei, pá.

– Ah, óptimo. Que susto. É que parece mesmo morta. Sendo assim vou pô-la em posições esquisitas e tirar umas fotos engraçadas para colocar no snapchat. #falsofalecimento. Já te mando.”

É possível, porém, que Shakespeare quisesse manter o final original, em que os dois amantes morrem, até porque, sabendo como os sogros se odeiam, os jantares de Natal acabariam por ser insuportáveis, e o melhor é acabar com o sofrimento daquele casal o mais depressa possível. Nesse caso, o monólogo final de Romeu teria de ser revisto:

“– Ah, querida Julieta. Porque estás ainda tão bela? Contemplai-a uma última vez, meus olhos. 
E, apenas por descargo de consciência, contemplai também uma última vez o telemóvel. Como é má a cobertura de rede, aqui. Possuo apenas um pauzinho. Frei Lourenço bem tenta contactar-me, mas a ligação é fraca e não consigo percebê-lo como deve ser. Qualquer coisa sobre uma poção. Enfim, teremos tempo para conversar na eternidade, pois ele conhece bem o senhorio da minha nova morada.”

Digamos que a referência à qualidade das telecomunicações desfeia um pouco a nobreza do discurso. 
É bom que os poetas descubram depressa algum lirismo na banda larga, caso contrário o teatro está perdido.


Fonte: Ricardo Araújo Pereira @ Visão


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