sábado, outubro 01, 2016

Eu e os condóminos

Pré-publicação do próximo livro de José António Saraiva, um diário baseado em conversas privadas que manteve com a porteira do seu prédio e no contacto privilegiado que foi tendo, ao longo de 35 anos, com os seus vizinhos.)

22 de Abril
Diz que a vizinha do 3º direito anda metida com o senhor da mercearia. Recebi a notícia com surpresa, pois estava convencido de que a vizinha do 3º direito era lésbica, uma vez que usa o cabelo curto e conduz um jipe. Além disso, sempre me olhou com bastante repugnância, no elevador. A propósito, aprecio elevadores. Levam-nos onde pretendemos ir, tanto para cima como para baixo, com eficácia e rapidez. Nutro grande admiração por quem os inventou.

2 de Maio
Consta no prédio que eu me embriago. Segundo a porteira, os vizinhos não encontram outra explicação para os raciocínios que costumo expender no átrio do prédio, quando me cruzo com eles. É estranho, porque não bebo. O único uso que dou aos copos é encostá-los à parede para escutar as conversas do casal que mora na casa ao lado. Sou um grande apreciador de copos. Quem os inventou estava bastante inspirado. Creio que são o meu recipiente favorito. Há copos de vários tipos: de vidro, de plástico, de papel... Há até uns copinhos feitos de chocolate, para beber ginja. Mas estes são menos bons para escutar os vizinhos, na medida em que sujam a parede – e, no verão, a própria orelha.

3 de Maio
Nem de propósito, encostei um copo à parede e escutei uma conversa interessante. Os vizinhos estavam a falar noutro condómino do prédio, mas não consegui identificá- -lo. Segundo eles, tem barba, cara de fuinha e, por vezes, as orelhas sujas de chocolate. Quem será o palerma? Vou tentar indagar junto da porteira, se a vir lá em baixo, junto à porta. Gosto muito de portas. O modo como dividem assoalhadas, embora permitindo a entrada, exerce sobre mim grande fascínio. De acordo com o que tenho observado, umas vezes, as portas estão abertas; outras, encontram-se fechadas.

15 de Maio
A vizinha da frente esteve a tomar banho. Com o auxílio dos meus binóculos, pude constatar que é uma pessoa que opta por sabonete, em vez de gel de banho. Normalmente não espreito pessoas no duche, mas o seu falecido pai disse-me que ela gosta muito de ser observada enquanto trata da higiene pessoal. Parece-me que a vizinha me viu e está a chamar a polícia. Vou citar aquela confidência do seu falecido pai quando os agentes me tocarem à campainha. Gosto muito de campainhas. Há vários tipos de toque, desde o tradicional trrrim ao mais moderno tlim tlão. Quando escrevo textos desta qualidade recordo-me sempre das palavras de um falecido membro da academia sueca, que me disse que tinha havido um engano, em 1998. Em vez de José Saramago, queriam ter dado o prémio a José Saraiva. Ambos os nomes começam por “José Sara”, e os suecos fizeram confusão. Quando deram pelo erro, já o nome do outro estava gravado na placa. Gosto muito de placas.


Fonte: Ricardo Araújo Pereira @ Visão

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