Parece que Portugal está de tal maneira contaminado por glifosato que todos os portugueses têm no organismo vestígios do herbicida que a Organização Mundial da Saúde classifica como provável carcinogéneo. Já se dizia que o frango tinha hormonas, a vaca tinha antibióticos, o peixe tinha mercúrio e agora tudo tem pesticidas. Confesso que é um grande alívio. Quando tudo está infectado, não há nada a temer. Qualquer estratégia para evitar o mal é fútil. Portanto, há que aproveitar. É como com o pecado. Só há uma coisa pior do que pecar: é pecar mal.
A partir do momento em que se estabelece que o pecado vai ser cometido, então é para pecar a sério. Para transgressõezinhas, não me convidem. Ou é ou não é. Essa ética do pecador chega agora à comida. Acabaram as preocupações, as estratégias para evitar certos alimentos, os cuidados com a proveniência dos ingredientes: tudo é mau e estamos todos perdidos. Nunca estive tão feliz.
O apocalipse nutritivo dá-me uma fulgurante alegria. Ingiro refeições ricas em colesterol? Sim, e depois? Seja como for, estou todo carcomido por dentro. Fará bem fumar um charuto depois do almoço e outro depois do jantar? É provável que não, mas isso só seria preocupante se eu não tivesse o organismo atafulhado de coisas tóxicas. Não se nega um cigarro a um moribundo, e eu estou a morrer de glifosato há décadas.
Uma vez li um texto de Marina Keegan, uma escritora, dramaturga e jornalista que era intolerante ao glúten. Dizia que, se soubesse o dia em que iria morrer, encomendaria uma última refeição de pizzas, hambúrgueres, donuts e todos os alimentos com glúten que não tinha podido comer. Keegan morreu com 22 anos, num desastre de automóvel, apenas cinco dias depois de se ter graduado magna cum laude na Universidade de Yale. Não pôde cumprir o seu desejo.
Eu acabo de perceber que estou todo podre. Os meus últimos dias são estes. Venha a picanha com antibióticos, a cabidela com hormonas, o sargo com mercúrio, tudo acompanhado de grelos salteados com glifosato. Agora é que eu me vou divertir a sério.
Fonte: Ricardo Araújo Pereira @ visão
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