quinta-feira, novembro 26, 2015

Assassinos sanguinários que se melindram facilmente

Quando o ayatollah Khomeini ordenou que Salman Rushdie fosse assassinado por ter escrito um livro, a ordem foi recebida com alguma compreensão. O escritor John Le Carré disse: "Não creio que possamos ser impertinentes em relação às grandes religiões impunemente." O arcebispo da Cantuária acrescentou: "Compreendo bem a reacção dos devotos muçulmanos, feridos naquilo que consideram mais sagrado, e pelo qual estariam dispostos a morrer." Quando Theo van Gogh foi assassinado por ter realizado um filme, aconteceu mais ou menos o mesmo. Um jornalista inglês, por exemplo, escreveu que o realizador tinha "abusado do seu direito à liberdade de expressão". Quando a violência deflagrou em vários sítios do mundo e cerca de 200 pessoas perderam a vida porque um jornal dinamarquês publicou uns desenhos, houve mais reacções parecidas. O Vaticano emitiu um comunicado que dizia: "O direito à liberdade de expressão (...) não pode implicar o direito a ofender o sentimento religioso dos crentes." O governo inglês considerou que a publicação dos desenhos foi "desnecessária", "insensível", "desrespeitadora" e "errada". O ministro português Freitas do Amaral afirmou que os desenhos ofendiam "as crenças ou sensibilidade religiosa dos povos muçulmanos" e acrescentou que a liberdade de expressão devia respeitar a liberdade de religião, concluindo: "liberdade sem limites não é liberdade, é licenciosidade". Quando vários cartunistas do Charlie Hebdo foram abatidos a tiro por terem desenhado uns bonecos, a culpa das vítimas voltou a ser referida. O Papa Francisco disse: "Não se pode provocar. Não se pode insultar a fé dos outros. Não se pode fazer troça da fé dos outros." Tony Barber, do Financial Times, escreveu: "seria útil que houvesse algum bom senso em publicações como o Charlie Hebdo (...) que reclamam estar a infligir um golpe pela liberdade quando provocam muçulmanos, mas estão apenas a ser estúpidos."

Esta semana, depois de mais de uma centena de pessoas ter sido assassinada por estar a ouvir música, a jantar num restaurante ou a ver um jogo de futebol, ainda ninguém veio chamar a atenção para o modo como o comportamento das vítimas ofendeu os fundamentalistas islâmicos. Permitam-me que seja o primeiro. A mesma sensibilidade com que algumas pessoas foram, ao longo do tempo, condenando certas provocações inaceitáveis aos assassinos, sempre tão susceptíveis, devia agora servir-lhes para detectar e repreender mais esta ofensa. Aquilo que as vítimas da passada sexta-feira estavam a fazer era tão afrontoso para os assassinos como escrever um livro, realizar um filme ou fazer um desenho: estavam a viver em liberdade. O comunicado no qual o estado islâmico reivindicou o atentado dizia que Paris tinha sido escolhida por ser "a capital do vício", que o Bataclan era um alvo por ser o sítio onde estavam reunidos "centenas de pagãos", que os terroristas tinham aberto fogo sobre "um ajuntamento de incréus" e que os ataques continuarão "enquanto continuarem a ofender o nosso profeta".

Felizmente, eu vivo num mundo em que temos a liberdade de nos ofendermos uns aos outros. Essa liberdade é fundamental, uma vez que as pessoas se ofendem com muitas coisas diferentes. Os bárbaros, por exemplo, ofendem-se primeiro com um livro, depois com um filme, depois com um desenho. E depois acabam por ofender-se com o facto de respirarmos. Talvez John Le Carré, Freitas do Amaral e o Papa considerem que devemos passar a respirar com mais respeito. Eu acho que isso é tão absurdo como escrever, filmar ou desenhar com o cuidado de não ferir a sensibilidade de assassinos.

Fonte: Ricardo Araujo Pereira@Visão

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