sábado, abril 18, 2015

Fluxo de inconsciência

"(...) até acho que, nesse aspecto, nessa coincidência, tem a felicidade de ser no mesmo momento em que outro grande português também nos deixa e por isso, nessa dimensão, é uma felicidade poder sê-lo e partilhar o momento com o mestre (...)."
José Pedro Aguiar Branco, sobre o facto de Silva Lopes ter morrido no mesmo dia de Manoel de Oliveira

Quando o ministro Aguiar Branco publicou um esclarecimento sobre estas declarações, dizendo que pretendia evitar que alguns fizessem uma utilização perversa das suas palavras, fiquei muito surpreendido. Normalmente, sou dos primeiros a fazer utilizações perversas das palavras alheias, mas só quando as compreendo. O potencial de utilização perversa desta frase (digamos assim) tinha-me passado despercebido, uma vez que, nesse aspecto, nessa coincidência, nessa dimensão, eu não fazia ideia do que ele estava a falar. Avisado por Aguiar Branco, fui então reexaminar as afirmações de Aguiar Branco, e julgo estar neste momento em condições de fazer uma utilização perversa, quer das palavras iniciais, quer do esclarecimento publicado a seguir.

Aguiar Branco justificou as suas declarações com um lapsus linguae. Não é uma desculpa aceitável. Trata-se, de facto, de um lapsus, mas a linguae não tem culpa nenhuma. Um lapsus linguae é, por exemplo, dizer "na praça vou ao domingo" em vez de "no domingo vou à praça". Aquela algaraviada sobre a felicidade da coincidência de um grande português que pode sê-lo também por isso no mesmo momento, não é um lapsus linguae. Creio que se trata do modo narrativo conhecido por fluxo de consciência, em que são reproduzidas as complexidades do processo mental das personagens. O fluxo de Aguiar Branco é particularmente torrencial, pelo que, como é óbvio, estilhaça as regras da sintaxe. Comparado com o pensamento de Aguiar Branco, o de Benjy Compson* é organizado e límpido. Ainda assim, é possível recolher, na estranha amálgama de vocábulos proferida pelo ministro, três magníficos conceitos novos.

O primeiro conceito é o do óbito sincronizado. Aguiar Branco assinala, e bem, a coincidência de terem morrido duas pessoas no mesmo dia. Esse acaso é, para o ministro, uma felicidade. Esta hipótese de encontrar felicidade num momento que, até aqui, se considerava ser pouco feliz, pode levar a que as pessoas pretendam sincronizar o seu óbito com o de figuras que admiram, buscando felicidade idêntica.

O segundo conceito é o do falecimento de prestígio. Está ligado ao óbito sincronizado, na medida em que o prestígio advém da coincidência dos óbitos, mas aprofunda a relação entre os dois finados, uma vez que um, além da felicidade que proporciona ao outro, ainda lhe confere uma notoriedade adicional.

O último conceito é o do defunto pendura. Não se pode ignorar que, neste jogo de passamentos, há um defunto mais prestigiado que dá uma boleia de status ao outro, a caminho da eternidade. Quando pensávamos que a morte nos torna iguais uns aos outros, Aguiar Branco consegue descobrir ainda um restinho de desigualdade, uma pole position rumo ao infinito.


Fonte: Ricardo Araújo Pereira

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