Como amante de poesia e de futebol, confesso que temi o pior quando Luís Freitas Lobo introduziu a poesia no comentário de futebol. Mesmo sendo má poesia, era poesia, e o meu conceito de futebol exclui qualquer espécie de lirismo. Para mim, o futebol é melhor quando se aproxima dos jogos que os miúdos jogam na rua, com duas pedras a fazer de baliza. Joguei muitas vezes assim e nunca me ocorreu dizer "Carlitos, a maneira como fintaste o Fernandinho fez-me lembrar aquele soneto do Wordsworth sobre o materialismo da sociedade industrial."
Acompanho com muito interesse as experiências linguísticas do comentário desportivo, e deve registar-se que Freitas Lobo tem contribuído para a consolidação de todos os grandes lugares-comuns sintácticos. É, por exemplo, um ilustre cultor da nova moda que consiste em falar com o verbo no infinitivo. Dá gosto ouvi-lo declarar: "Em primeiro lugar, dizer que Minhoca fez um grande jogo pelo Paços de Ferreira", ou "Antes de mais nada, dedicar este comentário a quem ama verdadeiramente o futebol."
O problema é quando Freitas Lobo resolve ser original. A sua mais recente inovação poética consiste na aplicação da seguinte fórmula: "O [inserir nome de jogador] é um [inserir metáfora] em forma de jogador de futebol." Alguns exemplos célebres são
"Ribery é uma carraça em forma de jogador de futebol",
"Rooney é um pugilista em forma de jogador de futebol",
"Matuidi é um alicate em forma de jogador de futebol",
"Pastore é uma pantera cor-de-rosa em forma de jogador de futebol",
"Mangala é um arranha-céus em forma de jogador de futebol",
"Michu é uma espécie de bip-bip a fugir do coiote em forma de jogador de futebol",
"Giovinco é um rato em forma de jogador de futebol",
"Caetano é uma pulga amarela em forma de jogador de futebol"
e o complexo
"Messi é uma pulga disfarçada de ET em forma de jogador de futebol".
Há um método infalível para determinar se o discurso de um comentador desportivo ultrapassou o nível aceitável de ridículo: trata-se de verificar se o modo como se expressa permeou o discurso do café. Hoje, por esses snack-bares fora, toda a gente fala em conceitos anteriormente desconhecidos, como transições, exploração do espaço entre linhas, duplo pivot. Mas nenhum frequentador de tascas diz para outro: "Ó Vítor, este Marcelinho é um ferro de engomar com termóstato ajustável em forma de jogador de futebol." A minha preocupação aumentou quando vi o próprio Freitas Lobo confessar, na contracapa de um livro, que tinha como objectivo "descobrir Sheakespeare em Bobby Charlton". Nem o facto de Shakespeare estar mal escrito me sossegou: este homem queria mesmo estragar o futebol com alta cultura, e não seria uma gralha a redimi-lo. Foi então que encontrei, na página oficial de facebook de Freitas Lobo, outra referência a Sheakepeare. E outra ainda no perfil do comentador no sítio da sua editora. Afinal é mesmo de Sheakespeare que estamos a falar. Ora, enquanto Shakespeare não tem lugar na tasca, Sheakespeare, pelo contrário, é bem-vindo. Não só se pode tentar descobrir no futebol a poesia de Sheakespeare como se deve procurar descortinar, em cada jogada, as ideias de Immanuel Kent, as teorias de Albert Einstoin ou o traço de Salvador Dalú.
A discussão de café é mais livre. Há menos regras, como no futebol de rua. "E o resto é silêncio", como diz Hamlet. Ou, neste caso, Heamlet.
Fonte: Ricardo Arajuo Pereira@Visao
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