quinta-feira, novembro 01, 2018

Cavaco e outros aborrecimentos

Apesar de as reformas não lhe chegarem para as despesas, Cavaco Silva encontra ainda tempo para escrever livros. Normalmente, os idosos com problemas financeiros vêem-se forçados a arranjar um emprego, nem que seja em part-time, para compor o orçamento. Ciente de que uma opção semelhante privaria o País das suas reflexões, Cavaco prefere passar dificuldades e dedicar-se a escrever as memórias do tempo em que foi Presidente. No volume que acaba de sair, Cavaco faz observações de dois tipos: as desinteressantes e as mesmo muito desinteressantes.

No primeiro grupo está a ideia de que Cavaco não é um político. Esta é a prova da falsidade daquela frase que diz que uma mentira repetida várias vezes se torna verdade. Cavaco tem repetido esta ideia sempre que pode, e no entanto ninguém acredita. Convenhamos que é difícil: quando o homem que, nos últimos 50 anos, ocupou durante mais tempo os principais cargos políticos portugueses vem dizer que não é político, as pessoas acabam por entender a declaração como uma daquelas dissimulações que são produto de uma desfaçatez da qual só um político é capaz.

No segundo grupo, Cavaco expende a sua opinião muito original sobre António Costa. Imaginem que, segundo o antigo Presidente, Costa, na altura candidato a primeiro-ministro, o que queria era ser primeiro-ministro. Incrível. E mais: calculem que Cavaco descobriu que Costa é um habilidoso, um artista que consegue conciliar as obrigações impostas pela Europa e as aspirações dos partidos à sua esquerda, através de estratagemas que, muitas vezes, são dissimulados. É uma perspicácia só ao alcance dos grandes estadistas. Enquanto os portugueses estavam armados em parvos, a pensar que Costa tinha uma genuína vontade de atender aos pedidos dos outros partidos, Cavaco topou que aquilo era tudo uma estratégia de manutenção do poder – ou seja, aquilo que se costuma chamar “política”.


Em certo ponto da obra, Cavaco refere que estes equilibrismos de Costa contrastam com a rectidão de Passos Coelho. Costa, diz Cavaco, aprendeu com Passos que “uma excessiva preocupação em falar verdade não é um caminho para o sucesso”. Ou seja, Passos caiu, coitado, porque tinha uma excessiva preocupação em falar verdade. Por exemplo, quando passou toda a campanha de 2011 a dizer que não aumentaria os impostos nem iria cortar pensões e salários. É o tipo de obsessão com a verdade que repele muito as pessoas.

A maior surpresa do livro, e um sinal evidente da grandeza do antigo Presidente, é o facto de Cavaco nunca ter aproveitado para atacar Costa por causa daquele seu amigo esquisito que tem uns problemas graves com a justiça e até já esteve preso. Na qualidade de pessoa que nunca deu lugares de destaque a amigos esquisitos que têm uns problemas graves com a justiça e até já estiveram presos, podia perfeitamente tê-lo feito. Mas, como não é um político preocupado com tácticas, perdeu a oportunidade.



Fonte: Ricardo Araújo Pereira @ visão

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