Haverá alguma característica especificamente portuguesa, que se possa identificar sem corrermos o risco de cair numa generalização grotesca? A minha resposta, que não surpreenderá os leitores habituais desta coluna, é: não faço a mínima ideia. Mas gostaria de arriscar um palpite. Se há traço que distingue o povo português dos outros é este: a gente gosta de comer e de falar sobre comida. Sendo duas coisas diferentes, na verdade são a mesma. A língua portuguesa tem um valor nutritivo que as outras não têm. Creio que é possível engordar a falar de comida em português. Vai um chouricinho? E se amanhã fizéssemos uma bacalhauzada? Boa sorte a traduzir estas perguntas para inglês, francês ou alemão. Eles sabem (vagamente) o que é chouriço e bacalhau. Mas nunca hão-de saber o que é um chouricinho e uma bacalhauzada. Falar de comida, em português, enche. Já tenho tomado refeições com gente de outros países e nunca vi nada parecido. Numa mesa de portugueses, come-se, recordam-se refeições passadas e projectam-se refeições futuras. E obtém-se tanto prazer da comida como da conversa sobre comida. Estamos a comer umas sardinhas mas alguém lembra aquela vez que comeu grande sopa de cação e depois conclui-se que o que ia bem ao jantar era uma cabidela. A gente ama através da comida – e é um amor bruto, como o único amor que vale a pena. Dizemos coisas que, apesar de carinhosas, estão bastante próximas do universo do crime. Por exemplo: “Você não sai daqui sem provar este salpicão.” Isto é vocabulário de sequestrador. E, no entanto, é ternura.
Pelo contrário, a conversa sobre o tempo não tem interesse nenhum. É, digamos, intransitiva. Está calor, não está? Sim, e então? Ui, que frio. Nunca mais vem o tempo quente. Pois, pois. Não há nada para acrescentar. Ninguém recorda uma tarde muito gira em que estavam 17 graus, nem diz a um amigo que não vai sair lá de casa sem sentir uma brisa quente que às vezes corre no jardim. A única maneira de tornar interessante uma conversa sobre o tempo (ou sobre outra coisa qualquer) é acrescentar uma nota sobre comida. Está calor, não está? Está. Quando as noites estão assim quentes, o que sabe bem é uma saladinha de polvo.
Fonte: Ricardo Araújo Pereira @ Visão
2 comentários:
Bem verdade. A nossa cultura e a nossa maneira de ser passa muito pelo convívio à mesa. Mas será que somos únicos nesse aspecto? Não será isso uma característica comum a todos os povos mediterrânicos? Espanhóis? Italianos? Gregos?
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