sexta-feira, maio 13, 2016

Sobre a dificuldade de rejeitar desafios

Antes que um de nós morra, gostaria de declarar sem margem para dúvidas a minha admiração por Miguel Esteves Cardoso. Numa entrevista à Paris Review, James Thurber disse que um dos maiores receios dos humoristas americanos de meados do século XX era dedicarem-se a trabalhar num texto durante três semanas e depois descobrirem que o grande Robert Benchley já tinha escrito sobre o mesmo assunto, e melhor, duas ou três décadas antes. Os humoristas portugueses do século XXI podem dizer a mesma coisa de Miguel Esteves Cardoso. É muito irritante. Acontece-me engraçar com uma particularidade qualquer da nossa língua e temer imediatamente duas coisas: que Miguel Esteves Cardoso já tenha falado dela; que Miguel Esteves Cardoso nunca tenha falado dela por não a achar suficientemente interessante. Registo, por exemplo, que não se costuma exarar nada noutro sítio que não seja uma acta. Ninguém exara coisas noutros documentos. “Exarei aqui uma lista de compras neste guardanapo” é uma frase que, muito provavelmente, nunca foi pronunciada. Do mesmo modo, as pessoas só envidam esforços. Pessoalmente, nunca envidei mais nada. Mas receio que Miguel Esteves Cardoso já tenha falado do mesmo e eu esteja a fazer figura de parvo. Devia envidar esforços para verificar se ele exarou uma coisa parecida algures, mas tenho preguiça. E medo.

Há uma moda que, por ser recente (pelo menos, só dei por ela agora), talvez lhe tenha escapado. Trata-se do lançamento de desafios. Todas as semanas, alguém me “lança um desafio”. Em noventa por cento dos casos, o lançador do desafio deseja, na verdade, um favor. Como pedir um favor envolve uma obrigação, opta por lançar um desafio, circunstância em que o obrigado passo a ser eu: devo ficar agradecido por ter sido resgatado à aborrecida modorra em que vivo, por intermédio de um interessante desafio. A palavra “desafio” já exprimiu uma impertinência (“Paula Cristina, não me desafies que eu sou tua mãe”) e até competição

(“O desafio entre Benfica e Sporting terminou com a vitória dos encarnados por 15-0”). Mas creio que só recentemente passou a ser um favor travestido. Creio que o objectivo é dificultar a recusa. Pode não haver tempo para fazer um favor, mas rejeitar um desafio é uma mariquice. Sabem muito, estes estilistas da língua.


Fonte: Ricardo Araujo Pereira @ Visão

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