quinta-feira, junho 04, 2015

Anéis de ouro a um tostão

Assistiu-se esta semana, na imprensa portuguesa, a mais um "Momento Mastóideo". O "Momento Mastóideo", que eu assinalo sempre que posso, é inspirado naquele passo do filme "A Canção de Lisboa" em que Vasco Santana, já reformado da vida boémia, responde a todas as questões do exame de medicina, incluindo à última, e mais difícil, sobre o esternocleidomastóideo. "Rico filho! Ele até sabe o que é o mastóideo!", comenta uma das tias da província, muito impressionada. O "Momento Mastóideo", que me orgulho de ter cunhado, ocorre sempre que uma tia da província se deixa impressionar pela erudição de um rico filho.

Esta semana, a tia da província foi o jornal Público. Três quartos da primeira página de domingo eram dedicados a um trabalho sobre linguagem corporal. O título era: "Os gestos que traíram os protagonistas do caso BES". Por baixo, dizia: "Um especialista em linguagem corporal analisou os depoimentos na comissão parlamentar de inquérito ao caso BES e chegou a conclusões surpreendentes." As conclusões surpreendentes são, em resumo, estas: todos, ou quase todos os inquiridos mentiram à comissão ou, pelo menos, não disseram tudo o que sabiam. Peço ao leitor que contenha a surpresa. Imagino os espasmos violentos que experimenta nesta altura. A culpa foi minha, que não o preveni para o assombro que ali vinha.

O rico filho é Rui Mergulhão Mendes (RMM), "especialista em apurar a veracidade de testemunhos através da linguagem corporal", a quem o Público pediu para analisar os depoimentos de Ricardo Salgado, Carlos Costa e outros. O jornal avisa que o especialista é "formado no Body Language Institute, de Washington". (Rico filho! Ele até estudou num instituto localizado no estrangeiro!) Quem desejar saber mais sobre este instituto deve dirigir--se ao site de Janine Driver, chamado "Lyin' Tamer" ("A Domadora de Mentirosos"), que é a fundadora, presidente e proprietária do prestigiado instituto. O site inclui um vídeo de um talk-show diurno em que Driver é convidada para dar conselhos acerca da linguagem corporal de senhoras que pretendem engatar cavalheiros em bares. E tem também uma ligação para o Body Language Institute, que promete "Cursos certificados para potenciar a confiança, o carisma e a carreira". Vê-se que RMM concluiu o curso com aproveitamento, porque apresentar-se como "especialista formado no Body Language Institute, de Washington" gera muito mais carisma do que dizer que se frequentou umas aulas ministradas por uma autora de livros de auto-ajuda. De acordo com o Público, os especialistas em linguagem corporal são tão importantes que "os canais de televisão norte-americanos convocam regularmente peritos na análise da linguagem não-verbal para comentarem, em horário nobre, os casos mediáticos". (Ricos filhos! Eles até são convidados para falar nas televisões da América! E em horário nobre!) Não admira, por isso, que a análise de RMM tenha detectado, segundo o Público, "muitos indícios de mentiras, inverdades, omissões, lapsos linguísticos e incongruências". Como é evidente, eu, que ainda hoje não sou capaz de distinguir uma mentira de uma inverdade, quis saber mais sobre o estudo do especialista.

O método de detecção de mentiras (e também de inverdades) consiste na análise de "micro-expressões". RMM observou "assimetrias nas sobrancelhas" de Álvaro Sobrinho, "desaparecimento corporal" em Ricardo Salgado, um "leve levantamento do lábio superior" em Carlos Tavares, um "fechar mais prolongado dos olhos" em Zeinal Bava, um "microtoque no nariz" de Paulo Portas e um "levantamento assimétrico de um dos cantos da boca" em Granadeiro. Quase todos os inquiridos recorreram ao igualmente suspeito "acto de ventilar". No entanto, o especialista dedicou a maior parte da sua atenção a comichões. Neste ponto, o Público pergunta, e bem: "Como distinguir uma simples comichão, normal, de um sinal emocional?" RMM tem experiência em destrinçar comichões e não se atrapalha: "Não há comichões por acaso. Os micropruridos que aparecem na cara surgem por indicação do nosso cérebro. Pica-nos ali e não é sem querer. Porque é que tocar no nariz está tão associado à questão da mentira? Porque irrigamos mais sangue e a extremidade do nariz é mais sensível e o sangue jorrou ali ou faltou (...). E faz comichão. (...) Quando ocorre um pico de comichão e nós coçamos, geramos uma sensação de acalmia, é uma forma micro de nos pacificarmos (...)." Para uma pessoa que, como eu, passa grande parte do dia a coçar-se, esta revelação é perturbadora. Eu minto quando estou a ler, minto a ver televisão, por vezes minto até a dormir.

RMM avança ainda com uma descoberta que escapou a todos, incluindo aos deputados da comissão que, distraídos com insignificâncias como o conteúdo dos testemunhos, também já tinham deixado passar em claro a maior parte das comichões: "Há um pormenor curioso: Portas e Salgado iam rigorosamente vestidos da mesma forma, com a mesma gravata, o mesmo casaco, a mesma camisa. O que nada nos diz sobre linguagem corporal, mas não deixa de ser interessante." Muito, muito interessante. Acabo, aliás, de fundar o Instituto da Indumentária Equivalente, cujo objecto de estudo é, precisamente, a influência da alfaiataria nas comissões de inquérito. Fico à espera do telefonema do Público. Temos primeira página para o próximo domingo.

Fonte: Ricardo Araújo Pereira @ Visão

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