sábado, fevereiro 21, 2015

A propriazinha

A minha principal objecção ao cinema é esta: parece-me que ver fotografias a um ritmo de 24 por segundo é um exagero.

Acaba por não se ver nenhuma fotografia como deve ser. A única ocasião em que o visionamento de 24 fotografias por segundo se justifica é quando amigos pretendem mostrar-nos os seus álbuns de casamento ou de férias. Nessas alturas, suspiro pelo cinematógrafo. Ao que parece, hoje sou o único a achar enjoativas estas sessões de exibição de fotografias da vida pessoal.

O mundo mudou muito. No meu tempo, contemplar fotografias de amigos era considerado um aborrecimento. Hoje, subscrevem-se contas de instagram para poder apreciar os pés de uma amiga à beira de uma piscina, o gato de um colega dormindo, ou o aspecto da sobremesa que um amigo se prepara para comer. As fotos de outrora, sendo fastidiosas, eram, apesar de tudo, menos triviais. Havia amigos junto de monumentos, defronte de catedrais, perto de animais selvagens. Não ocorria a ninguém, regressado de férias, dizer aos amigos: "Olha que giro, aqui estão os pés da Clotilde junto à piscina do hotel." Ou: "Temos agora uma foto de um prato de arroz-doce que o Mário comeu." Hoje, as pessoas procuram fotos destas. Ninguém as obriga a vê-las. São elas que buscam retratos de pés alheios. Algo se passa com a humanidade.

De todas as fotografias contemporâneas, a mais perigosa é a selfie ou, em português, a propriazinha. A selfie é o equivalente moderno da PIDE. Também persegue, tortura e mata. A PIDE contava com umas dezenas de inspectores pouco espertos e alguns bufos diligentes. As selfies contam com milhões de utilizadores pouco espertos e o facebook, o instagram e o twitter. Uma selfie, para os meus leitores do século XX, é uma fotografia que uma pessoa tira a si mesma, em geral com um telefone. A PIDE, para os meus leitores do século XXI, era a polícia política do Estado Novo. Há quem morra a tirar selfies em posições perigosas.

Há quem seja torturado durante anos pela memória de uma selfie irreflectida. Cristiano Ronaldo está a ser perseguido por umas selfies tiradas na sua festa de aniversário.

Há selfies, belfies (fotografias do próprio rabo) e felfies (fotografias do próprio junto de animais de quinta). Além da pulsão de vida e da pulsão de morte, é também muito poderosa a pulsão de publicar auto-retratos.

Freud estava distraído provavelmente, a fotografar os próprios pés junto de uma piscina.

Fonte: Ricardo Araujo Pereira @ Visão

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