sexta-feira, setembro 12, 2014

Escatologia dos euros

"O rico moderno tem menos bens em seu nome do que São Francisco de Assis"

De acordo com Jesus Cristo, é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus. Quem já tentou fazer um camelo passar pelo buraco de uma agulha tem a noção exacta da dificuldade da tarefa, sobretudo se usou o mesmo método que se aplica às linhas, e que consiste em humedecer-lhes a ponta. Humedecer a cabeça de um camelo exige alguma coragem, muita salivação e um bom elixir oral. Cirilo de Alexandria acreditava que as palavras do Messias tinham sido mal reproduzidas. Em grego, o vocábulo que designa camelo (kamelos) é muito parecido com o que designa corda (kamilos), e quem registou as declarações do Senhor pode ter feito confusão (já se sabe como são os jornalistas). Uma vez que uma corda também não passa facilmente pelo buraco de uma agulha, os ricos foram forçados a engendrar uma estratégia para entrar no reino dos céus, a saber: não possuir quaisquer bens em seu nome. 

O rico moderno tem menos bens em seu nome do que São Francisco de Assis. A questão, portanto, não é tanto a de saber para onde vão os ricos quando desaparecem. O que deve ocupar os teólogos é descobrir para onde vão os euros quando desaparecem. Nunca me desapareceu um rico, mas desaparecem-me euros todos os dias. Sobretudo, é difícil responder às questões que as crianças nos colocam a este respeito. "Papá, o dinheiro que tinhas no chamado banco mau para onde foi?" "Onde estão as poupanças que o avô foi convencido a investir nas empresas do grupo BES?"

"O meu dinheiro também vai desaparecer?" São inquietações para as quais não temos resposta clara. Dizemos apenas que não sabemos onde o dinheiro está. "Mas o Cavaco não tinha dito que os portugueses podiam confiar no BES, papá?" Não convém deixar as crianças assistir aos noticiários. É muito cedo para elas aprenderem a lidar com a perda. Mais tarde poderemos dizer-lhes que o desaparecimento do dinheiro é uma parte da nossa vida financeira, e que o máximo que podemos fazer é protege-lo de uns gatunos entregando-o a outros. Mas, para já, teremos de esperar que a ciência seja capaz de determinar claramente para onde vai o dinheiro que desaparece. Com a justiça, aparentemente, não contamos. Entretanto, teremos de contar às crianças as mentiras piedosas do costume. Que o dinheiro desapareceu mas vive agora num banco muito bonito, com inúmeras outras notas. Que tem uma vida de grandes investimentos que nós não lhe podíamos proporcionar. Enfim, que está no paraíso. No paraíso fiscal, evidentemente. 

Fonte: Ricardo Araújo Pereira @Visão

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