Com simpatia, humanidade e devoção, os comentadores do Benfica TV, estação que transmitiu o derby da Luz, não cessaram de vislumbrar qualidades e talento, em suma, apetência para o lugar, em todas as intervenções do nosso guarda-redes depois daquele seu fatídico lapso que resultou no golo do empate do Sporting.
As subsequentes fífias, e foram algumas, passaram pudicamente sem criticismo e as mais simples operações do guardião foram profusamente elogiadas como se tratassem de acções só ao alcance de um predestinado.
Ao contrário de Artur, de facto um predestinado, os comentadores da Benfica TV cumpriram com o seu trabalho missionário sem mácula. E, mais do que uma vez ao longo da emissão, alertaram para a necessidade de «dar moral», de «recuperar o ânimo», de «fazer esquecer», enfim, de tratar com carinho o guarda-redes que só podia estar a passar um mau bocado, mentalmente de rastos, depois de ter oferecido o golo a Slimani.
Como eu os compreendo, os comentadores da Benfica TV. Com 70 minutos ainda por jogar era da maior conveniência a tal benesse caritativa de «dar moral» a Artur ainda que ele não os pudesse ouvir.
O que Artur ouviu, de facto, ouvimos todos nós. Os que foram ao estádio e os que ficaram em casa em frente ao televisor. A crueldade do público, dos vermelhos e dos verdes, manifestou-se ininterruptamente a cada intervenção do guarda-redes do Benfica. E mesmo quando, bem perto do fim do jogo, Artur fez, efectivamente uma grande defesa salvando o empate, esgotado de tanto o achincalhar, o público afecto ao Benfica reagiu com um fleumático «era o mínimo exigível» que não antecipa nada de bom na relação entre o guarda-redes e os adeptos.
Neste arranque da temporada de 2014/2015, e estando frescas as memórias de Oblak, as similitudes do presente caso Artur com o caso Roberto, não tão distante assim, são tantas que nem vale a pena perder tempo a apontá-las.
A questão é que o Benfica, que luta para conquistar títulos, não pode recair no logro auto-infligido de ter um guarda-redes que é um caso, ou não é? Basta que a bola ronde a sua área para que o público se arrepele de nervos e para que os seus colegas de equipa, solidários, entrem em colapso orgânico perdendo o discernimento e o resto.
Foi isto que se viu no domingo na Luz.
E a tal ponto que mesmo alguns benfiquistas que se exasperaram com a contratação de Júlio César por ter sido o guarda-redes mais batido do último Mundial, quase exigiam, quando chegou o intervalo, que Jorge Jesus deixasse Artur no duche e fizesse a equipa regressar ao relvado com o titular da selecção do Brasil entre os postes, o que não veio a suceder, no mínimo por razões humanitárias.
O treinador do Benfica fez valer na sua decisão a corrente da antipsiquiatria que se recusa a definir os males morais e mentais como doenças propriamente ditas, enfim, como males do corpo. E, por isso, Artur continuou em campo até ao fim do jogo e, não é demais repetir, até salvou o resultado à beira do fim.
Se Artur se tivesse aleijado fisicamente num braço, numa mão, numa perna seria naturalmente substituído, tal como aconteceu na temporada passada quando, em Dezembro, caiu desamparado em Olhão magoou um ombro e cedeu o lugar a Oblak que não mais largou a posição até à última final da brilhantíssima época.
Se o treinador do Benfica concordasse com a corrente que defende serem os padecimentos da mente tão reais quanto o são os padecimentos do físico, não teria hesitado em lançar Júlio César na segunda parte do derby considerando que Artur, de facto, estava tão magoado quanto o está, por exemplo, Rúben Amorim.
Podemos divagar tempos infinitos sobre este assunto. Há até quem acredite que Artur está mais lesionado do que Ruben Amorim. Sobre o tema, podemos mudar as vezes que quisermos de opinião. Jorge Jesus, por ser o treinador, é que não hesitou e Artur regressou depois do intervalo à baliza do Benfica.
Postas como estavam as modas, o treinador não quis correr o risco de, no mesmo jogo, queimar dois guarda-redes, o que seria duplamente lastimável.
Analisados os factos com frieza, é esta a minha opinião sobre o caso Artur no seu esplendor. Não será, certamente, uma opinião abalizada. Aliás, agradeço que nem me falem mais em balizas.
Nico Gaitán vem desenvolvendo o hábito de marcar golos ao Sporting mas, de facto, neste aliciante pormenor, Nico Gaitán ainda não é nenhum Óscar Cardozo. Embora para lá caminhe, isto se permanecer mais alguns anos no Benfica, obviamente.
No domingo à noite muitos devem ter sido os benfiquistas assobiadores do Cardozo que tiveram saudades do paraguaio que tinha o condão de perturbar Rui Patrício, só de o ver por perto. Sem Cardozo em campo, o guarda-redes do Sporting assinou uma atuação consistente e, por diversas vezes, salvou a sua equipa de situações de muito apuro.
Não me entendam mal. O Cardozo, a quem os benfiquistas muito devem mesmo contrariados, saiu na altura certa, pelo preço certo. Na sua última temporada entre nós, recorde-se, pouco fez de relevante para além de um hat-trick a Rui Patrício (lá está!) numa eliminatória ainda precoce da Taça de Portugal, troféu que o Benfica viria a ganhar.
Mas que ao Benfica faz falta não o Cardozo mas um Cardozo, ai isso faz. Vai ter de ser inventado, ai isso vai.
Pelas mesmas razões, depreende-se, os adeptos do AC Milan estão tão chocados com a saída do jovem Bryan Cristante para o Benfica como os adeptos do Benfica estão chocados com a saída do jovem Bernardo Silva para o Mónaco.
Aguardemos serenamente pelos resultados práticos destas duas operações. Para depois termos opinião.
Começou Setembro. Até ao fim do ano vão quatro meses. Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro. O Enzo Pérez sairá em Janeiro. Já percebemos. Não é preciso repetir e repetir e repetir.
Agora um bocadinho de literatura. A propósito de Bella Guttmann e do episódio da sua inóspita saída do FC Porto mal tinha o mítico treinador acabado de festejar nas Antas o título de campeão nacional de 1958/1959.
Guttmann deu um título nacional ao FC Porto e, surpreendentemente, mudou-se para o Benfica, a conselho médico, na urgência de fugir à humidade da cidade Invicta. Terá sido por causa do reumatismo que afligia a mulher do treinador que o Benfica acabou por receber em Lisboa o húngaro que lhe marcou uma era ao sol.
No Porto, naturalmente, a justificação do esposo dedicado nunca foi aceite como razoável. Antes pelo contrário, a desculpa da humidade foi interpretada como insultuosa artimanha para a deserção. E com bastos motivos para tal, convenhamos.
Por causa da humidade… onde é que já se viu uma coisa destas?
E é aqui que entra o prometido bocadinho de literatura. No volume II das suas Memórias, o escritor Raúl Brandão, recordando as circunstâncias da morte do poeta Guerra Junqueiro, avança com este pormenor: «Foi então que o médico interveio, aconselhando-o a mudar-se, durante algum tempo, para Lisboa, porque a humidade do Porto lhe estava a prejudicar a saúde.»
Ora aqui está outro conselho clínico da mesma índole do que fez viajar Bella Guttmann do Porto para Lisboa no ano de 1959. Que se saiba, não sofreu revezes na Capital a saúde da mulher do treinador húngaro. Já da saúde e do estado de espírito de Guerra Junqueiro não se poderá dizer a mesma coisa.
Para mais esclarecimentos voltemos às Memórias de Raúl Brandão:
«Trouxeram-no para Lisboa para casa da filha e do genro, mas ele, frequentemente, dizia:
- Levem-me para o Porto! Quero morrer no Porto!»
Não levaram o poeta para o Porto. Morreu em Lisboa num dia de Julho de 1923.
Ao contrário de Guerra Junqueiro, Bella Guttmann voltaria ao Porto, provavelmente já viúvo, mas ainda muito saudável, com a provecta idade de 73 anos para treinar, na temporada de 1973/1974 o emblema de que desertara catorze anos antes.
Tal como Guerra Junqueiro, Guttmann também não morreu na Invicta mas foi aí que acabou, sem glória, a sua gloriosa carreira."
Fonte: Leonor Pinhão @A Bola
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