Quem gosta de ficção científica deve ler o prefácio de Cavaco Silva ao livro que reúne os seus discursos. E quem aprecia uma boa noite de sono deve ler os discursos. São muito repousantes. Mas o prefácio é uma pequena pérola de criatividade e imaginação. Sobressalta e inquieta, como toda a boa ficção, mantém o leitor agarrado ao enredo, e no entanto contém expressões como "sustentabilidade da dívida pública", "crescimento anual do produto nominal" e "monitorização da política económica". Uma proeza de que Ray Bradbury e Phillip K. Dick nunca foram capazes. Bradbury tentou, em tempos, imaginar um futuro distante em que máquinas, homens e o crescimento anual do produto nominal batalhavam pelo domínio do planeta, mas nunca passou do primeiro capítulo. E Dick chegou a esboçar um romance acerca da sustentabilidade da dívida pública no planeta Zordon, mas acabou por desistir. Cavaco é o primeiro autor a conseguir conciliar a ficção científica com o Quadro Financeiro Plurianual 2014-2020.
A grande ideia do prefácio é a seguinte: Cavaco imagina o Portugal de 2035, um país em que a dívida, em grande medida, já foi paga, e desceu para um valor próximo dos 60% do PIB. Para que isso aconteça, há que seguir a estratégia que, nos últimos anos, fez com que a dívida subisse de 90% para 120% do PIB. De acordo com as contas do Presidente, Portugal precisará de crescer 3% ao ano durante 20 anos seguidos para atingir este objectivo. No entanto, segundo pessoas que foram consultar dados, nos últimos 40 anos Portugal não conseguiu crescer 3% uma única vez. Tenho de ir reler o prefácio, porque não dei pela parte em que seres de outros planetas visitam o nosso país e o colocam no caminho do crescimento económico inédito, partindo dos escombros deixados por uma das maiores crises de sempre. É capaz de estar nas entrelinhas e eu, que sou um leitor pouco sofisticado, não percebi. Tenho dado por mim a lamentar que o meu pensamento seja tão rústico. A questão da Rússia e da Ucrânia vai ou não iniciar uma guerra mundial? Confesso que não sei. Se não assassinarem um arquiduque ou invadirem a Polónia, não consigo perceber se vai haver conflito global.
O aspecto mais corajoso do prefácio é o facto de Cavaco não ter medo de ser desmentido pela realidade. Quando hoje assistimos à série Espaço 1999 não podemos deixar de rir com a ideia que os seus autores faziam do que o mundo seria há 15 anos. Mas Cavaco aposta num mundo extraordinariamente fantasioso já a médio prazo. Politicamente, nunca primou pela coragem, mas como escritor é um valente.
Cronica: Ricardo Araujo Pereira @Visão
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