quinta-feira, setembro 20, 2018

Não há machadinha que corte a raiz ao pensamento

Às vezes decido acabar uma SMS escrevendo: “Um abraço do Ricardo.” Sucede que, sempre que começo a escrever o meu nome, o telefone sugere a palavra “ridículo”. Até hoje nunca aceitei a sugestão, mas o telefone mantém a convicção de que eu deveria despedir-me dizendo: “Um abraço do Ridículo.” Portanto, confirma-se: os smartphones conhecem-nos mesmo muito bem. Não é difícil. O facto de andar sempre comigo, dentro da algibeira, e de assistir às minhas pesquisas no Google, faz com que o telefone adquira uma ideia bastante precisa acerca de quem eu sou. Ridículo é um resumo muito perspicaz. Ainda assim, há alguns pormenores que o telefone desconhece – e que ajudariam a compor e reforçar este retrato. Permitam-me que vos revele um deles, para edificação de todos.

Quando, nas aulas de latim, foi preciso aprender a primeira declinação, o professor dispôs os casos pela ordem do costume (nominativo, vocativo, acusativo, genitivo, dativo, ablativo) e depois escreveu as terminações (singular: a, a, am, ae, ae, a; plural: ae, ae, as, arum, is, is). E então ocorreu-me que um bom modo de memorizar as desinências seria recitá-las ao som da música infantil A Machadinha. Foi o que fiz. A, a, am, era o início da cantiga. Ae, ae, a, correspondia ao verso “minha machadinha”. E por aí fora. Resultou. Entre a primeira declinação e a Machadinha não havia outra semelhança a não ser o facto de uma começar por “A, a, a” e outra por “a, a, am”. Ambas eram difíceis de compreender: eu estranhava igualmente que, por um lado, as palavras tivessem uma forma diferente consoante a função que desempenhavam na frase e, por outro, que alguém quisesse cantar sobre uma machadinha que, não se sabia bem como, saltava para o meio da rua. A voz feminina que cantava na Machadinha acabava a dizer que havia de ir à roda escolher o seu par, que era um rapazinho chamado José. O verso seguinte dizia: “Chamado José, chamado João.” Tratava-se, portanto, de um rapazinho que, como as palavras na língua latina, mudava de designação com facilidade. Resumindo, quando o professor me perguntava pela forma da palavra rosa no genitivo plural, eu cantava mentalmente a Machadinha até à parte “quem te pôs a mão sabendo” e respondia “rosarum”. O professor, desconhecendo o logro que decorria à sua frente, dizia “muito bem”. Mas eu não conseguia evitar corar um bocadinho. E foi assim que estudei latim. Um abraço para todos do Ridículo.



Fonte: Ricardo Araújo Pereira @ Visão

segunda-feira, setembro 17, 2018

As tais coisas que acontecem na nossa terra



Na imagem que ilustra esta crónica vê-se claramente visto um senhor bombeiro conversando agarrado ao telemóvel (com a mão esquerda), enquanto, agarrado a uma cana de pesca (com a mão direita), procura observar minuciosamente, no meio da fumarada, o funcionamento dos artefactos do festival legalizado de pirotecnia que abrilhantou o dérbi de maio em Alvalade.

O senhor bombeiro vira e revira os artefactos com a ponta da cana de pesca para não se queimar e também para não estragar o espectáculo e lá vai conversando, ao mesmo tempo, com a Protecção Civil de quem recebe instruções concretas: terá de verificar todas as tochas que foram artisticamente disparadas para o relvado, observar-lhes a cor de origem, interrogá-las, uma a uma, exigindo-lhes a apresentação do alvará emitido pelo Instituto Português dos Desportos e da Juventude e do Ver Se Te Avias. Concluídos os procedimentos legais e superiormente confirmada a legalidade dos artefactos artísticos, lá se prosseguiu com a função daquela noite como se nada de raro se tivesse passado. E não se passou nada de raro. Nem de condenável. São as tais coisas que acontecem na nossa terra
O sufrágio do último sábado colocou ponto final no francamente exagerado período de turbulência institucional no Sporting. Apurados os resultados, clarificou-se a situação e dissiparam-se as dúvidas que eram mais do que muitas, eram imensas. Ficou, assim, tudo explicadinho acabando-se pela força do voto com os "alegadamentes" e com as "putativas" mais os "putativos": Bruno de Carvalho é, de facto, o ex-presidente do Sporting, Frederico Varandas é, de facto, o atual presidente do Sporting, José Sousa Cintra será, mais cedo ou mais tarde, o presidente honorário do Sporting e João Benedito será, mais cedo ou mais tarde, o próximo presidente de facto do Sporting.
Quanto a José Maria Ricciardi, que foi durante anos a fio titular do cargo de ‘presidente-sombra’ de facto do clube, acabando por sofrer nas urnas uma gritante penalização com que poucos contavam, a começar pelo próprio Ricciardi, viu-se democraticamente despojado da insondável posição de ‘presidente’ e passou a ser, apenas, ‘sombra’ porque lhe aconteceu não colher votos que lhe sustentassem o anterior e singular duplo estatuto. Coisas que acontecem.
Acusado pelo Ministério Público de corromper funcionários judiciais a troco de bilhetes para a bola e de camisolas do Benfica, Paulo Gonçalves estará de saída do cargo que ocupou na SAD da Luz. Gonçalves irá defender-se fora do Benfica de tudo o que pesa sobre a sua honorabilidade. Elementar. Aliás, coisa mais elementar do que esta não há.
Recebendo esta noite o Rio Ave, o Benfica entra em acção na Taça da Liga onde, na temporada passada, fez uma pequeníssima figura. Espalhou-se ao comprido, é verdade, e logo na temporada em que a Taça da Liga, por milagre, passou a ser importante e considerada. Coisas…



Fonte : Leonor Pinhão @ record

sexta-feira, setembro 14, 2018

Hora essa

Quando se soube que a Comissão  Europeia ia propor o fim da mudança da hora tive, mais uma vez, uma sensação de conforto e segurança. É muito bom saber que, enquanto eu vivo de forma inconsciente e despreocupada, há gente responsável, num gabinete de Bruxelas, a operar as transformações de que o mundo precisa. Além disso, esta proposta vem ao encontro da minha perspectiva sobre a vida. Com o fim da mudança da hora, no inverno o dia nasce às 9 da manhã, e eu sempre disse que 9 da manhã é madrugada. Talvez agora me compreendam.

A regulamentação do calibre das frutas foi um primeiro passo para vivermos uma vida melhor e mais civilizada. Nunca mais tivemos de passar pela experiência traumática de comprar uma maçã de diâmetro irregular. Mas continuava a ser perturbador adquirir maçãs regulamentares às 9 da manhã no inverno. Havia demasiada luz. Por isso, e concretizando certamente um sonho de Jean Monnet, a União Europeia vai intervir no sentido de acabar com a mudança da hora.
Talvez seja injusto atribuir a responsabilidade desta medida exclusivamente à União Europeia.

As notícias sobre o assunto dizem que, e cito: “A maioria dos europeus quer acabar com a mudança da hora.” Fui então investigar em que consulta popular é que a maioria dos europeus exprimiu este desejo e descobri que a União Europeia fez um inquérito na internet em que participaram 4,6 milhões de cidadãos dos 28 Estados-membros, 3 milhões dos quais eram alemães. Tendo a União Europeia 508 milhões de habitantes, 4,6 milhões corresponde a menos de 1% da população. Sucede então que a maioria de uma esmagadora minoria de cidadãos deseja que, em Janeiro, o dia amanheça às 9. Não sei quantos dos 508 milhões de habitantes da União Europeia trabalham no ramo da electricidade, dos candeeiros e das lanternas, mas suspeito que o número ande à volta dos 4,6 milhões.


Pessoalmente, a alteração vai causar-me algum transtorno. A mudança da hora constituía uma excelente desculpa para chegar atrasado. Com jeito, conseguia esticar a desculpa durante uma ou duas semanas. “Fiz confusão porque ainda não mudei o relógio do carro”, por exemplo, era um clássico muito eficaz. Enfim, é mais uma tradição antiga  que se perde em nome do progresso. Ao menos  sabemos que é por uma boa causa.



Fonte: Ricardo Araújo Pereira @ Visão

segunda-feira, setembro 10, 2018

Crónica futurística: exílio do Benfica e o país em 2022

Oito de Setembro de 2022. Cumpre-se hoje a 4.ª jornada do campeonato espanhol e o Benfica joga em Valladolid. São esperados 15 mil portugueses. É uma alegria para o comércio local e também para o clube anfitrião, que vê assim esgotada a lotação do Estádio José Zorrilla. O presidente da Real Federación Española de Fútbol tinha razão quando, no já distante verão de 2019, ao aceitar a inscrição do Benfica em La Liga, prometeu aos espanhóis que a presença do maior clube português teria reflexos importantes na indústria. E, de facto, assim tem acontecido, superando até as expectativas. Ainda há duas semanas, quando na 2.ª jornada foi o Benfica jogar no campo do Girona, nem os 1400 quilómetros que distam entre Lisboa e aquela cidade catalã impediram que uma multidão de benfiquistas enchesse o Estádio Montilivi para assistir a uma expressiva vitória do seu emblema e ao regresso de Jonas depois daquele aborrecido problema lombar.

'O Benfica trará maiores benefícios ao futebol espanhol do que aqueles que o Mónaco empresta ao campeonato francês ou mesmo dos que os clubes de Israel emprestam às competições organizadas pela UEFA', disse na altura o presidente da RFEF. Na altura ninguém o levou a sério e a novidade foi até recebida com foros de excentricidade internacionalista. Mas, logo na primeira época em que o Benfica jogou em La Liga 2019/20, os índices da sua presença foram altamente satisfatórios. Aumentaram as assistências no estádios e as receitas dos operadores televisivos espanhóis, aumentaram as tiragens dos jornais 'As' e 'Marca', que passaram a vender-se nos quiosques das cidades portuguesas, aumentaram as receitas do comércio local por todo o país vizinho e aumentou a cotação dos jogadores do Benfica que, jogando no campeonato espanhol, passaram a ter uma visibilidade de mercado inatingível em Portugal.

A economia portuguesa é que tem sofrido um bocado com esta proscrição. A cada segunda-feira, milhares e milhares de cidadãos nacionais comparecem nos seus postos de trabalho extenuados pelos milhares de quilómetros que percorrem na Ibéria ao fim de semana para apoiar o Glorioso. O impacto desta situação por cá e já um caso sociológico: o campeonato português, coitado, é uma miséria total, o Record, 'A Bola' e 'O jogo' fundiram-se num só título e as estações de televisão passaram a transmitir nas suas noites uma programação toda virada para a ópera italiana, para a cartomancia e para a jardinagem. A águia Vitória foi fuzilada em directo - o que levantou algumas objecções dos ambientalistas internacionais - e encontram-se actualmente empalhada no gabinete de uma pessoa importante. Hoje, no Seixal vivem apenas a Madonna mais os filhos e todos aqueles relvados foram transformados num acampamento para lisboetas despejados de suas casas pela pressão imobiliária. Muito mais do que um clube, o Benfica é uma obra social. Y olé!"



Fonte: Leonor Pinhão @ record

sábado, setembro 08, 2018

Parque de campismo da Portela

Enquanto não sai um novo e muito necessário guia do viajante português, já adaptado às novas dificuldades criadas pelo turismo, avanço aqui com alguns conselhos úteis para os cidadãos que ainda pretendam utilizar o Aeroporto Internacional de Lisboa neste período de férias. Em primeiro lugar, continua a ser importante não esquecer o passaporte mas também a tenda. A tenda vai ser útil para descansar – e, talvez, até pernoitar –, até ao momento de fazer o check-in. O melhor local para montar a tenda seria junto dos balcões, mas é muito improvável que consiga chegar lá sem escolta policial. O melhor é acampar junto dos táxis. Também essencial é levar uma esfregona. Entre a choradeira das crianças aborrecidas com a espera, dos turistas que chegam com atraso e de gente cujos voos são periodicamente adiados, há muitas poças de lágrimas que, se não forem limpas, podem gerar bastante humidade na sua tenda. Passageiros que levem dois ou três dispositivos pirotécnicos são tolerados e até bem recebidos porque, na eventualidade de conseguirem chegar à zona do raio X, é apenas humano querer soltar um ou dois foguetes. A partir daqui, é ajuizado levar um bom lote de mantimentos. Por causa do constante adiamento da hora de embarque, comida enlatada e outros alimentos não perecíveis são aconselhados. Para o período em que, já a bordo do avião, se aguarda pela autorização de partida, é conveniente levar uma boa biblioteca. Quem tenha recursos para isso e tiver empenho em investir na sua educação fará bem em levar consigo um professor, e conseguirá licenciar-se ainda antes de levantar voo. Os cursos de Filosofia e História, que requerem sossego e tempo para ler e reflectir, serão talvez os melhores. A chegada ao destino também requer tramitação complexa. O viajante deve aproveitar o tempo livre para preencher a candidatura ao subsídio de desemprego, uma vez que será despedido antes de voltar a Portugal. Os atrasos nos voos de regresso, motivados pela sobrelotação do aeroporto, obrigá-lo-ão a faltar a uma ou duas semanas de trabalho. O subsequente internamento numas termas, para recuperar do stress vivido no aeroporto, eleva para seis meses o período de inactividade. 

Boas férias!



Fonte: Ricardo Araújo Pereira @ Visão



sábado, setembro 01, 2018

E este calor?

Haverá alguma característica especificamente portuguesa, que se possa identificar sem corrermos o risco de cair numa generalização grotesca?  A minha resposta, que não surpreenderá os leitores habituais desta coluna,  é: não faço a mínima ideia. Mas gostaria de arriscar um palpite. Se há traço que distingue o povo português dos outros é este: a gente gosta de comer e de falar sobre comida. Sendo duas coisas diferentes, na verdade são a mesma. A língua portuguesa tem um valor nutritivo que as outras não têm. Creio que  é possível engordar a falar de comida em português. Vai um chouricinho? E se amanhã fizéssemos uma bacalhauzada? Boa sorte a traduzir estas perguntas para inglês, francês ou alemão. Eles sabem (vagamente) o que é chouriço e bacalhau.  Mas nunca hão-de saber o que é um chouricinho  e uma bacalhauzada. Falar de comida, em português, enche. Já tenho tomado refeições com gente de outros países e nunca vi nada parecido. Numa mesa de portugueses, come-se, recordam-se refeições passadas e projectam-se refeições futuras.  E obtém-se tanto prazer da comida como da conversa sobre comida. Estamos a comer umas sardinhas mas alguém lembra aquela vez que comeu grande sopa de cação e depois conclui-se que o que ia bem ao jantar era uma cabidela.  A gente ama através da comida – e é um amor bruto, como o único amor que vale a pena. Dizemos coisas que, apesar de carinhosas, estão bastante próximas do universo do crime. Por exemplo: “Você não sai daqui sem provar este salpicão.” Isto é vocabulário de sequestrador. E, no entanto, é ternura.

Pelo contrário, a conversa sobre o tempo não tem interesse nenhum. É, digamos, intransitiva. Está calor, não está? Sim, e então? Ui, que frio. Nunca mais vem o tempo quente. Pois, pois.  Não há nada para acrescentar. Ninguém recorda uma tarde muito gira em que estavam 17 graus, nem diz a um amigo que não vai sair lá de casa sem sentir uma brisa quente que às vezes corre  no jardim. A única maneira de tornar interessante  uma conversa sobre o tempo (ou sobre outra  coisa qualquer) é acrescentar uma nota sobre comida. Está calor, não está? Está. Quando  as noites estão assim quentes, o que sabe bem  é uma saladinha de polvo.



Fonte: Ricardo Araújo Pereira @ Visão

Modalidades - 2024/04/13

Sábado, 2024/04/13  - 15:00 - Rugby - Gds Cascais -v- SL Benfica - Campeonato Nacional De Honra | 23/24 - Jornada 18  - 15:00 - Andebol Fem...