sexta-feira, junho 29, 2018

"Noção do ridículo". Brevemente na Netflix

A Netflix, uma provedora global de filmes e séries de televisão via streaming (estou a copiar da Wikipédia porque não sei descrever com rigor a actividade da Netflix e a minha imaginação nunca seria provedora de uma palavra como provedora), definiu um conjunto de regras de conduta para os seus funcionários. As regras são bastante sensatas: não estabeleça contacto físico demorado e indesejado com os seus colegas, não continue a incomodá-los se já lhe disseram que não estão interessados em si, etc. A última regra, no entanto, é: não olhe para ninguém durante mais de cinco segundos. Como a notícia saiu nos tablóides ingleses, toda a gente teve o bom senso de desconfiar. Mas, instada a comentar, a Netflix não confirmou nem desmentiu, o que costuma constituir prova de veracidade. Além disso, responsáveis da empresa acrescentaram: a questão do assédio sexual não deve ser menorizada – o que está certíssimo. Infelizmente, a melhor maneira de menorizar uma causa é ter um histérico a defendê-la.

Exprimir, sobre determinado assunto, duas ou três ideias sensatas e depois acrescentar uma ideia absolutamente ridícula diminui a importância do assunto. Foi provavelmente por isso que, a seguir a “Não matarás” e “Não roubarás”, Moisés não acrescentou aos Dez Mandamentos a ordem “Não cantarás aquela da Céline Dion em karaokes porque toda a gente esganiça na parte em que ela diz que o seu coração vai continuar e é desagradável”. O profeta percebeu que misturar coisas estúpidas com coisas sensatas retirava peso à sensatez, e por isso era melhor não introduzir regras parvas na lista. Aquilo de não cobiçar a mulher do próximo já era esticar bastante a corda.


Valeria a pena analisar a mistura especial de autoritarismo com puritanismo que faz com que alguém pense: “Isto dos olhares tem de ter regras.” A acta da reunião em que um comité de sábios definiu que um olhar de cinco segundos é aceitável e um de seis é nocivo seria um primeiro e interessante documento de estudo. Uma descrição minuciosa da logística requerida para aplicar a nova regra mereceria edição em livro: qual o rácio recomendado de Fiscais do Olhar por cada funcionário? Há regras especiais para funcionários estrábicos? Uma coisa é fixar um colega durante seis segundos com o olho bom; outra coisa é fixá-lo com o olho maroto. Por uma vez, o olho bom é mais maroto do que o olho maroto, facto que deve ser contemplado na lei. Enfim, há um longo clausulado para redigir. Ao trabalho.



Fonte: Ricardo Araújo Pereira @ visão

sexta-feira, junho 22, 2018

Biggs Paradiso

É uma pena que Giuseppe Tornatore não tenha tido imaginação suficiente para incluir a ERC na lista de personagens do filme Cinema Paradiso. Já era tempo de as entidades reguladoras terem bons papéis no cinema, porque são personagens densas e complexas, e dariam espessura às narrativas. Em Cinema Paradiso, como é sabido, um padre submete a censura prévia os filmes que passam no cinema de um lugarejo italiano, cortando todas as cenas de beijos. Digo censura prévia porque, como infelizmente a ERC não participa no filme para orientar o espectador, a gente tem a tentação de concluir, precipitadamente, que censura é censura.

Esta semana, a ERC decidiu a favor do canal Biggs – que, como o padre de Cinema Paradiso, cortou um beijo numa série de animação. A directora do Biggs disse que o corte constituía “uma apreciação de natureza editorial, que nada tem a ver com censura” – e a ERC, pelos vistos, concordou. Como sempre que um programa é alvo de uma apreciação de natureza editorial, a minha curiosidade excitou-se. É como se costuma dizer: o fruto editorialmente apreciado é sempre o mais apetecido. Até o Marquês de Pombal, quando criou a Real Mesa Realizadora de Apreciações de Natureza Editorial, devia saber que as obras ali julgadas viriam a atrair mais atenção sobre si mesmas. Portanto, fui ver o canal Biggs. Foi tempo bem gasto. O programa em causa chama-se Sailor Moon Crystal, e conta a história de um grupo de moças que são guardiãs do universo. Há várias batalhas, explosões, bichos esquisitos, espadas que brilham, raios laser destruidores e mortes. O canal Biggs achou, no entanto, que a parte que podia perturbar o seu público juvenil era um beijo. É um beijo entre duas personagens femininas, ou seja, a matéria que costuma dar pesadelos às crianças. Quantos pais não tiveram já de consolar os filhos que acordam, de madrugada, encharcados em suor e a gritar coisas deste tipo:

– NÃO! NÃO!

– O que foi, Pedrinho? Estiveste outra vez a ver Sailor Moon Crystal?

– Sim…

– Estás com medo da vilã, a pérfida Rainha Beryl do Reino das Trevas?

– Não. Eu tolero-a bem, e à sua vontade de obter o poderoso Cristal de Prata com o fim de destruir tudo o que há de mais belo no universo.


– Então? Impressionou-te a morte da Chibiusa às mãos daquela personagem também maléfica, cujo cabelo de repente se transformou numa espécie de erva daninha que estrangulou a outra e a atirou ao chão com violência?

– Não, não. Isso foi muito giro.

– Se calhar estás perturbado com aqueles grandes planos dos olhos das personagens, típicos da animação japonesa, que transmitem uma densidade psicológica que nós não captamos, e ficamos armados em parvos a olhar para aquilo com a sensação de que é a nossa superficialidade ocidental que nos impede de perceber o que raio é que os bonecos estão a sentir durante aquele tempo todo?

– Não. Foi o beijo entre duas personagens femininas. Aquele amor abala os alicerces da minha personalidade infanto-juvenil, pois vai contra a lei de Deus. Posso jogar um pouco de Grand Theft Auto, para desanuviar? Estou a dois homicídios de obter um precioso bónus.

Estas cenas são frequentíssimas, infelizmente. Mas graças à ERC, ao canal Biggs e ao padre do Cinema Paradiso, podem finalmente acabar. Ufa. Bem-haja quem protege os nossos pequeninos do amor.



Fonte: Ricardo Araujo Pereira @ Visão

terça-feira, junho 19, 2018

Cristiano Ronaldo & mais 10

O jogo de abertura de qualquer Campeonato do Mundo é suposto constituir-se numa sensaboria medonha. Reforçando a nota, deve a partida inaugural de um acontecimento desta dimensão terminar num empate, de preferência sem golos, ou numa vitória pindérica da selecção do país anfitrião. É isto o que mandam as boas maneiras do internacionalismo. Os russos, sempre agarrados às suas manias, resolveram mandar às malvas esta bonita tradição da hospitalidade e destroçaram a equipa nacional da Arábia Saudita com uma mão cheia de golos sem resposta. E, ainda assim, com tantos golos, o jogo foi uma sensaboria. Cinco golos e um aborrecimento.

Aparentemente, um Campeonato do Mundo de futebol é para os melhores do mundo, para a elite da elite desta magnífica indústria planetária. Felizmente, há excepções para alegrar com os preciosismos das cores locais o sisudismo da presunçosa organização. Não bastava ter a Espanha despedido o seu treinador 48 horas antes do jogo de estreia (até mais ver é o cúmulo do terceiro-mundismo deste Mundial'2018) e ainda se soube que o presidente da federação saudita, o senhor Ezzat, insultou publicamente os seus jogadores depois da catástrofe inaugural com a Rússia. Imagine-se um acontecimento portentoso como este, um Mundial, a ser beliscado intelectualmente pelos desvarios de um presidente exótico ao ponto de apontar a dedo os nomes dos jogadores que mais o desapontaram em campo e ainda "os erros técnicos" gerais que conduziram à derrota. Uma coisa destas, de facto, só lá nas arábias.

Já o outro jogo do nosso grupo, entre marroquinos e iranianos, só tendo um golo, foi mais interessante do que o dos russos com os sauditas com aquele despudorado fartote de golos. Começou muito bem a selecção de Carlos Queiroz. Jogou um bocadinho menos do que o adversário mas soube atar a equipa de Marrocos e esperar pelo golpe de sorte.

"Cristiano Ronaldo & mais 10" - é uma espécie de firma - conseguiu a proeza de adiantar a equipa no marcador e depois voltou a re-adiantar a equipa no marcador e, finalmente, quando já eram os espanhóis que iam adiantados no marcador e a coisa se apresentava negra, lá voltou a firma "Cristiano Ronaldo & mais 10" a fazer das suas e a impor um empate que soube como ginjas, em função da realidade dos factos. Aliás, quer no penálti com que inaugurou a noite, quer no livre directo com que fechou a noite, Cristiano Ronaldo não precisou dos "mais 10" para nada. Fez tudo sozinho, sofreu as faltas e cobrou-as exemplarmente. Foi lindo.



Fonte: Leonor Pinhão @ record

sexta-feira, junho 15, 2018

Anúncio em português suave

Não fume. A menos que queira, claro. Se quiser, fume. Tem esse direito e ninguém deseja, de modo nenhum, restringir a sua liberdade. Portanto, pode fumar. Pode no sentido de ter essa possibilidade, não no sentido de lhe estarmos a dar permissão. Não precisa da nossa permissão para nada, como é óbvio. Só lhe sugerimos que deixe de fumar porque os cigarros fazem mal à saúde. Mas, pensando bem, é impossível que, em 2018, alguém não saiba ainda que fumar faz mal, pelo que talvez seja paternalista estar a chamar-lhe à atenção para um facto consabido. Pedimos desculpa. Vamos recomeçar.

Se conseguir, não fume. Quer dizer, é evidente que consegue, porque é forte e independente. Consegue tudo o que quiser. E era importante para nós que quisesse deixar de fumar, porque o fumo mata. Mas a culpa não é sua. É da nicotina, do benzeno, do amónio, do cianeto de hidrogénio e de outras substâncias presentes nos cigarros. Era o que faltava que a culpa de fumar fosse do fumador, só porque compra, acende e fuma os cigarros. Bom, talvez o fumador tenha um bocadinho de culpa. Mas é uma culpa muito moderada, quase inexistente. Pelo amor de Deus, não se deixe esmagar pelo peso da culpa. Por favor, não chore. É melhor tentar outra vez.

Gostaríamos que não fumasse. Mas não queremos com isto dizer que o facto de fumar nos desgosta. Não é isso. Respeitamos as suas opções, sejam elas quais forem, e não fazemos depender o nosso afecto por si do seu consumo de tabaco. Nós, aqui na Direcção-Geral de Saúde, amamos tanto a população fumadora como a não-fumadora. Não que houvesse alguma dúvida sobre isso. Queremos deixar claro que não há qualquer relação entre a capacidade de ser amado e o consumo de tabaco. Já estamos arrependidos de termos falado em amor. Dá sempre mau resultado, porque é um tema polémico. Voltemos ao início.


Com todo o respeito, pondere a hipótese de, quiçá, considerar a possibilidade de, sendo a ideia do seu agrado, deixar de fumar. Não é um pedido leviano, porque sabemos que o processo de abandonar o consumo de tabaco é extremamente complexo, doloroso e difícil. E, para falar com toda a honestidade, até tem inconvenientes. Por exemplo, ao que parece, quem deixa de fumar fica com tendência para engordar. Não que haja algum mal em ser gordo, atenção. Somos todos lindos. Especialmente os gordos. E os gordos fumadores mais ainda. Bolas. Estamos um bocadinho nervosos. Precisamos de um cigarro.



Fonte: Ricardo Araújo Pereira @ visão

segunda-feira, junho 11, 2018

A selecção de 2018 é muito melhor do que a de 2016

Falta uma semana para o arranque do Mundial e o jogo com a Argélia foi excelente para desfazer dúvidas. Há muito que não se via uma exibição tão esclarecedora da nossa selecção e logo em vésperas de um importante torneio, quando é normalíssimo haver montanhas de incertezas na cabeça dos adeptos e também, haja respeito, na cabeça do seleccionador. Isto de ter de escolher 11 entre 23 jogadores é um quebra-cabeças. É verdade que a selecção argelina não é grande espingarda, mas não foram apenas as suas insuficiências que autorizaram Bruno Fernandes, Gonçalo Guedes e Bernardo Silva a desfazer todas as dúvidas sobre quem devem ser os titulares das posições em que se exibiram no Estádio da Luz naquele que foi o jogo de despedida da Selecção antes da partida para a Rússia. 

Houve ocasiões em que Fernandes, Guedes e Silva até exageraram. Já estava toda a gente mais do que convencida de que aqueles três tinham, como se costuma dizer, "agarrado o lugar", e eles, estilhaçadas as dúvidas, continuavam a elevar a sua arte e as suas eficácias a um patamar francamente indecoroso. Por causa destes (e também por causa de outros) é que a selecção portuguesa de 2018 é muito melhor do que a selecção de 2016 que, há dois anos, conquistou em França o título de campeã da Europa. O facto de ser muito melhor não significa que tenha a obrigação de vencer o Mundial nem de andar lá perto. Não, nada disso. Um Campeonato do Mundo não é um Campeonato da Europa. Graças ao progresso da ciência, é certo que Cristiano Ronaldo está cada vez mais novo e também é verdade que esta nova vaga de jogadores portugueses se apresenta como empolgante, mas nada garantirá na Rússia a sequência de golpes de sorte que pautou a caminhada portuguesa até ao tal título continental naquela noite parisiense. Uma coisa dessas não volta a acontecer. É pena.

As claques não fazem falta nos estádios de futebol, como se viu anteontem na Luz. Casa cheia, apoio incondicional, público comum. Os que dizem que as claques fazem falta porque dão mais alegria às bancadas e mais cor e cânticos ao espectáculo, não sabem do que estão a falar. Por claques entenda-se, obviamente, grupos de desordeiros protegidos pelo colapso do Estado e pelas pessoas que dizem que as claques fazem muita falta ao futebol.

O líder (ou ex-líder, tanto faz) da claque entrou ontem no tribunal algemado, com as mãos atrás das costas e arrastado pelo braço, sem-cerimónia, por um polícia. Imagine-se, um polícia a faltar ao respeito a um líder de uma claque e em público. Que problema tremendo. Nestes casos, no entanto, é bem melhor ser polícia do que ser jogador. Um jogador ainda bem recentemente foi admoestado pelo patrão por ter desconsiderado em público um VIP do hooliganismo: "Por que fizeste aquilo ao chefe da claque? Agora tenho um problema tremendo…" Já não há respeito."



Fonte: Leonor Pinhão @ record

domingo, junho 10, 2018

O Dia de Camões e das Comunidades Portuguesas

O Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas celebra a data de 10 de Junho de 1580, data da morte de Camões,



O Hino Nacional é A Portuguesa.



I
Heróis do mar, nobre povo,
Nação valente, imortal,
Levantai hoje de novo
O esplendor de Portugal!
Entre as brumas da memória,
Ó Pátria sente-se a voz
Dos teus egrégios avós,
Que há-de guiar-te à vitória!

Às armas, às armas!
Sobre a terra, sobre o mar,
Às armas, às armas!
Pela Pátria lutar!
Contra os canhões
marchar, marchar!


II
Desfralda a invicta bandeira
À luz viva do teu céu!
Brade a Europa à terra inteira:
Portugal não pereceu
Beija o solo teu jucundo
O oceano, a rugir d'amor,
E o teu braço vencedor
Deu novos mundos ao Mundo!

Às armas, às armas!
Sobre a terra e sobre o mar,
Às armas, às armas!
Pela Pátria lutar!
Contra os canhões
marchar, marchar!


III
Saudai o Sol que desponta
Sobre um ridente porvir;
Seja o eco de uma afronta
O sinal de ressurgir.
Raios dessa aurora forte
São como beijos de mãe,
Que nos guardam, nos sustêm,
Contra as injúrias da sorte.

Às armas, às armas!
Sobre a terra e sobre o mar,
Às armas, às armas!
Pela Pátria lutar!
Contra os canhões
marchar, marchar!



Letra: Henrique Lopes de Mendonça
Música: Alfredo Keil
Data: 1890

sábado, junho 09, 2018

Taxarei até que o orçamento me doa

Quando se soube que o preço dos combustíveis ia subir pela décima semana consecutiva, maldisse os cientistas. Pessoas menos sofisticadas maldizem o Governo, mas eu tento que as minhas rabugices sejam modernas e elevadas. Claro que, de acordo com gente que fez contas, mais de metade do preço do combustível são impostos. O meu carro, neste momento, está a gastar 10 euros de impostos aos 100. Em gasolina propriamente dita gasta apenas 6 euros. E isso enerva, com certeza. Mas é importante não esquecer que, com o dinheiro dos impostos, o Governo constrói, por exemplo, estradas. Estradas essas que, aliás, estão em óptimo estado, uma vez que ninguém tem dinheiro para andar nelas, dado o preço dos combustíveis. Ou seja, os impostos sobre os combustíveis contribuem ao mesmo tempo para a construção de estradas e para a sua manutenção.

É por isto que, na minha opinião, a ira deve ser dirigida contra os cientistas. Ninguém poderia imaginar que a Ciência se dedicasse a inventar o carro sem condutor antes do carro sem combustível. Como nunca ninguém se queixou do preço dos condutores, esperava-se que os cientistas atacassem o problema que afligia verdadeiramente as pessoas e inventassem um veículo movido a energia barata ou até gratuita. Os autores de ficção científica indicaram a prioridade com toda a clareza. Nos filmes da série Regresso ao Futuro, o professor que inventa a máquina do tempo concebe um carro movido a lixo. Os espectadores ficaram moderadamente impressionados com a hipótese de viajar no tempo, mas a ideia de ter um carro cujo combustível são cascas de banana e latas de refrigerantes vazias comoveu plateias em todo o mundo. Que o carro pudesse conduzir-se sozinho, no entanto, não passou pela cabeça de ninguém. Ora, o certo é que, em 2018, temos carros que andam sozinhos, mas continuam a necessitar de combustível. Entre o ser humano e o gasóleo, os cientistas decidiram que o mais urgente era dispensar o primeiro.


Em abono dos cientistas, deve dizer-se que a inexistência de gasolina não implicaria a inexistência de impostos. Creio que Mário Centeno teria talento suficiente para inventar um imposto sobre cascas de banana. E um imposto sobre esse mesmo imposto, justificado pelo facto de ser justo taxar quem se deixa taxar por lixo. E assim sucessivamente até à Taxa sobre o Dinheiro que Escapou às Outras Taxas – que, não tenho dúvidas, será criada em breve.



Fonte: Ricardo Araújo Pereira @ visão

domingo, junho 03, 2018

Morfologia do repúdio: um estudo

Sempre que um acontecimento repudiável ocorre, podemos ter a certeza de que ninguém vai perder a oportunidade de o repudiar. Há três grandes tipos de repúdio: o repúdio simples, o veemente repúdio e o vivo repúdio. Existem ainda subcategorias de repúdio, como o repúdio veemente, que opera a troca do substantivo pelo adjectivo (o que raramente ou nunca sucede com o vivo repúdio: não registámos qualquer ocorrência de um repúdio vivo), e o mais veemente repúdio (ou o mais vivo repúdio), quando se trata de um repúdio verdadeiramente superlativo.

Uma análise aos repúdios manifestados a propósito da invasão ao centro de treinos do Sporting, em Alcochete, revela que o acontecimento foi repudiado de uma forma bastante variada. O Governo foi o primeiro a repudiar, por intermédio do secretário de Estado da Juventude e do Desporto, que exprimiu “repúdio veemente”. O Sporting repudiou pouco depois, anunciando em comunicado que repudiava “de forma veemente”. São dois repúdios muito semelhantes, simples e dignos, que devem a sua simplicidade ao facto de terem sido proferidos em primeiro lugar.


Quanto mais tempo passa desde o acontecimento repudiável, mais dramática tem de ser a manifestação de repúdio. A Holdimo e a Associação de Treinadores, mais lentas a repudiar do que o Governo e o Sporting, viram-se forçadas a exprimir “o seu mais veemente repúdio”. Esta formulação indica que ambas as instituições são capazes de outros repúdios, não tão veementes, mas para esta situação reservaram o seu mais veemente repúdio. A Federação Portuguesa de Futebol, provavelmente sentindo-se ferida no orgulho repudiador, avançou então com uma declaração de repúdio parecida, que continha uma diferença subtil mas significativa: anunciou que os actos mereciam “o mais veemente repúdio”. Uma coisa é comunicar o seu mais veemente repúdio, como fizeram a Holdimo e a Associação de Treinadores; outra é transmitir o mais veemente repúdio. Não é apenas o seu mais veemente repúdio: é, subentende-se, o mais veemente de todos os veementes repúdios manifestados até ali. Custa a crer que o secretário de Estado não tenha sido demitido na hora, depois de se ter deixado ultrapassar, tanto em veemência como em repúdio, pela FPF. O presidente do núcleo do Sporting da Madeira, Duarte Agrela, exprimiu um bastante inovador “total repúdio”. Evitando o campeonato da veemência (que naquela altura era liderado pela FPF, com o Governo numa desonrosa última posição), Agrela preferiu, e bem, concentrar-se no repúdio – que, no seu caso, era total.Um justo remoque a todos os que, privilegiando a veemência, corriam o risco de apresentar repúdios bastante veementes mas parciais. Pela minha parte, aproveito para manifestar agora o mais vivo, mais veemente e mais total repúdio.



Fonte: Ricardo Araújo Pereira @ visão

Difícil aceitar tão clamorosa distracção

O mais surpreendente é tudo isto ser uma surpresa para muita gente. É difícil aceitar tão clamorosa distracção. Se, por absurdo, considerarmos a gerência do actual presidente como uma sucessão de cinco temporadas de um "reality show", são claros, desde os episódios iniciais da 1.ª temporada, os múltiplos indícios que haveriam de conduzir ao desfecho patente nestes derradeiros episódios da 5.ª temporada. Como diriam os americanos desta nobre indústria, utilizando o jargão do sector, este só pode ter sido o melhor "season final" de sempre na história do entretenimento em directo e "ao vivo". De tão bem iludido que estava, o público não se deu conta de nada. Só por isso se explica como ficou positivamente atónito com o evoluir dos acontecimentos. Agora, que está desfeito o mistério, a coisa irá lentamente deixando de ter interesse e dúvidas há se haverá sexta temporada. Mas nesta vida não se pode ter certezas.

Uma vez mais, durou pouco o mal-estar do Benfica nas manchetes dos jornais. A rescisão de contrato do capitão da equipa rival apoderou-se hegemonicamente dos dias. De facto, o caso não é de somenos. Embora para os benfiquistas fosse óbvio que todo aquele noticiário impiedosamente comprometedor sobre o tal jogo no Funchal não passava de uma manobra do inimigo para tentar abafar o que de verdadeiramente importante vinha a caminho. É esta a maneira de ser dos adeptos de futebol de todas as cores, acreditam em tudo que lhes conceda vantagem – qualquer espécie de vantagem – e não acreditam em nada que lhes seja desagradável ouvir. Chega de filosofias.
- O Benfica tem dois traumas, o Vale e Azevedo e o Jorge Jesus – disse o presidente rival (em exercício) na televisão há três temporadas atrás. Depois tentou desenvolver a sua ideia mas explanou-a com pouco detalhe.
Ora, uma coisa destas não vos deu logo que pensar? Não, aparentemente não.

Reveladas na carta de rescisão do capitão da equipa, as admoestações do presidente aos jogadores por desrespeitarem a claque chocaram a grande maioria do público porque, na realidade, não passa pela cabeça de ninguém que situações destas possam ocorrer mesmo num "reality show". Quando o presidente pergunta a um jogador "porque fizeste aquilo ao chefe da claque? Logo a ele, tenho um problema tremendo, estiveram a ligar-me a noite toda, todos os gajos da claque, a dizer que te queriam apanhar, que queriam a tua morada..." está-se logo a ver que quem tem um "problema tremendo" não é o presidente, é o clube. Mas ninguém viu problema algum quando, numa das primeiras temporadas, o presidente encabeçou uma marcha conduzindo os prosélitos em direção a um estabelecimento de comida rápida numa bomba de gasolina. Os motivos não foram apurados. Nem nunca mais se falou no assunto. Foi pena. Ter-se-ia poupado, talvez, o desesperado apelo "às autoridades públicas" com que ontem presidente da mesa da assembleia geral confessou, também ele, a sua estupefacção.



Fonte: Leonor Pinhão @ record

A sedução do nojo

A extraordinária popularidade da palavra nojo no debate público português só tem duas explicações possíveis: ou Portugal está cada vez mais nojento ou os intervenientes no debate têm um vocabulário cada vez menos vasto. Inclino-me para a segunda hipótese. Portugal tem muitos defeitos, mas (mesmo sem estar na posse de dados do INE) parece-me que se tem mantido relativamente estável em termos de nojo – o que contrasta com a cada vez maior frequência com que se assinala a ocorrência de múltiplos nojos: a divulgação de certos vídeos é um nojo; determinado artigo de jornal é um nojo; esta opinião é um nojo; aquela gente mete nojo; essa pergunta é um completo nojo. A discussão decorre, pelos vistos, numa pocilga argumentativa e o objectivo é ser o primeiro a apontar o nojo da posição do adversário. A grande vantagem deste modelo é a rapidez. Não é preciso aperfeiçoar argumentos e debater: não se discute com o nojo. Há a nossa opinião e o resto é nojo. Quem decreta nojo encontra-se numa imbatível posição de superioridade moral: é, ao mesmo tempo, mais sensível e mais limpo do que o seu opositor, que é demasiado bruto e porco para perceber que está a ser nojento. Após sentenciado o nojo, não há discussão: aguarda-se que o nojento seja retirado da presença das pessoas asseadas.

Este vómito perpétuo tem o mérito de introduzir alguma energia num ambiente que costuma ser titubeante. Num país em que os factos são sempre alegados, é bom que o nojo seja comprovado. Podemos não ter a certeza de nada, mas sabemos que é nojento. Sempre conseguimos agarrar-nos a qualquer coisa.


O problema deste método é que, em português, a palavra nojo tem significados bastante diferentes. A expressão “uma pessoa nojenta” tanto pode designar uma pessoa que mete nojo como uma pessoa que se deixa enojar com facilidade. Ou seja, quando acusamos os outros de serem nojentos, estamos a ser nojentos. E fica difícil distinguir o nojento que inflige nojo do nojento que sofre nojo – o que acaba por ser nojento. Além do mais, estar sempre a bradar nojo parece mesmo coisa de mete-nojo. E há ainda uma questão adicional. No nosso complexo idioma, o nojo não é necessariamente mau. É frequente, por exemplo, determinada sobremesa ser tão boa que até mete nojo. Fica claro, por isso, que é preciso encontrar outra estratégia para diminuir preguiçosamente o adversário. Esta é um nojo.



Fonte: Ricardo Araújo Pereira @ visão

Modalidades - 2024/04/13

Sábado, 2024/04/13  - 15:00 - Rugby - Gds Cascais -v- SL Benfica - Campeonato Nacional De Honra | 23/24 - Jornada 18  - 15:00 - Andebol Fem...